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    O Barco
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    O Barco

    Os segredos do mar

    por Bruno Carmelo

    Era uma vez uma mulher que se apaixonou pelos símbolos de uma cartilha escolar e decidiu batizar os vinte e seis filhos com as letras do alfabeto. Era uma vez um pescador que saiu para o mar e, quando voltou, nunca mais pronunciou uma palavra. Era uma vez um cego sábio, uma mulher sedutora trazida pelas ondas, um filho rebelde planejando sair de casa. O Barco se estrutura como uma lenda. Nesta minúscula comunidade cortada do resto do mundo, as tradições são passadas entre gerações pela oralidade, enquanto os adultos de mãos calejadas se impressionam com magias e contos.

    O diretor Petrus Cariry oferece uma estética naturalista para um conteúdo fabular, gerando um efeito bastante interessante: por um lado, as belíssimas imagens da praia em scope, cuidadosamente enquadradas pela fotografia, transmitem a impressão de realismo social (a dureza da pesca, a miséria dos casebres, a ideia de estagnação); por outro lado, as pessoas anunciam profecias, assistem a shows eróticos com narrações de estupros, imaginam – ou presenciam de fato – a existência de barcos aparecendo nas águas. O mar é explorado pela dualidade vida/morte: é ele quem fornece o alimento da numerosa família, mas é ele quem tira a voz do pai. É o mar quem traz a encantadora forasteira, mas também é ele que impede a fuga do filho mais velho.

    A natureza, neste caso, representa ao mesmo tempo a liberdade e a prisão. “Pelo mar, quase nada chega e quase nada se vai”, afirma a melancólica narração, contradizendo as próprias imagens: afinal, a narrativa de O Barco está inteiramente baseada em coisas que partem nas águas, ou chegam nela. O cineasta permite que a sua narrativa seja entrecortada por silêncios, repetições, além de uma constante ameaça de perigo – a fuga de A (Rômulo Braga), o ataque dos homens a Ana (Samya De Lavor), o retorno da voz do pai (Nanego Lira). As imagens transparecem um tom grave, acentuado pelas atuações soturnas, pelo som direto “sujo”, misturando vozes e ruídos, e pela trilha sombria. Apesar de seu tecido dramático, o projeto se embala numa atmosfera de suspense.

    A pluralidade de elementos nem sempre se completa bem: muitos personagens não interagem uns com os outros, existindo em núcleos isolados. A mãe Esmerina (Verônica Cavalcanti) sabe da existência de Ana? Outras pessoas, além dos membros da família principal, interagem com o cego (Everaldo Pontes)? Pela imersão num território psicológico, mais do que propriamente social, a narrativa foge à impressão de coletividade, evitando representar os espaços para além do mar, da areia, do casebre. A narrativa sugere um aspecto labiríntico dos espaços, uma asfixia a céu aberto – vide o momento das dezenas de crianças saindo do escuro, sabe-se lá de onde, ou esta casa onde Ana se apresenta, e que parece não estar nem perto, nem longe das demais casas.

    Talvez o melhor aspecto de O Barco seja a sua capacidade de sugerir caminhos narrativos que ele mesmo não pretende seguir. Qualquer forma de linearidade é interrompida, as reviravoltas mirabolantes nunca vêm. A figura do barco se assemelha a uma miragem só vista pelos olhos de A, a sereia encantadora e perigosa encarnada por Ana talvez não exista fora de seu palco de véus e velas. O espectador é convidado a transitar por um universo onírico, etéreo, no qual o peso de uma realidade adversa é diluído nos mistérios da natureza. Talvez tudo não passe de um sonho; talvez não exista uma moral da história.

    Filme visto no 28º Cine Ceará - Festival Ibero-Americano de Cinema, em agosto de 2018.

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